sábado, abril 9

duas ou três imagens do contágio




defronte a ode, marítima

No cais do Tejo, 1881, Alfredo Keil




Estou sentada defronte. E ele frente ao cais. Uma luz fria aqui. Lá, onde?, talvez também um qualquer frio. Lembro-me dele dizer haver brisa. Fecho o livro. Não cheguei a abri-lo. Fico com o que pode ter restado, ao longo do caminho, daqueles minutos possuídos, minutos atrás. Esforcei-me apenas em não deixar que tudo se esvaísse, como tudo se esvai. Nestes trinta minutos de um fôlego compresso entre faróis e uma temporalidade presumível que me desconheça, agora, chego aqui. Demoro-me pouco e volto a ver o homem parado no cais, com a fivela em meia lua sobre si, este pêndulo comercial que faz desenhos geométricos de sombra ao redor de seu corpo. Lembro-me da inutilidade de tudo isto, desta movência, este guindaste talvez amarelo sob um sol talvez de gesso, tudo sobre um caminho que apenas acidentalmente o levou ao cais. Mas no cais tudo começa a desabar. E ele mal sabe, ou sabe-o bem demais. É para nós que esta cena é montada. Por mais que nos esqueçamos.


Vejo-o e coloco nele um chapéu de mágico. Não há chapéu nenhum, o sol é ainda fresco matutino, mas visto-o com luvas também, sem deixar que tudo isso crie sobre seu porte um humilhação maior, não penso mesmo em palhaços, penso no prestigitador, e é exatamente isto: a palavra que vem junto com o mar semântico que ele convoca.


Pois, um mago. Um mago com espécimes de palavras mágicas. E assim ele começa a sua ode marítima, brincando perversamente de evocar fantasmas, como aquela criança que fizera o teste da vela e topou de cara com um morto não amigável. Este sujeito está ali tão apático e descrente que imagina mesmo que, ao evocar as palavras corretas, imagina que este exercício não pudesse ter conseqüências tão drásticas como aquele levantar do espelho da infância. Começa, aos poucos, lento, até ir se possuindo por aquilo que ele mesmo canta, até se embruxar de sua própria técnica. Em segredo é que eu choro. Este homem parece não me enganar. Nesta hora, deixo de lado as suspeições todas com que chego perto dele. Desisto de ser lúcida. Guardo o meu estatuto para o final. Fico comovida. Vejo que o feitiço virou contra o feiticeiro. Ele evocava tudo, todos, tudo, num desespero absurdo por sentir. Parece que ele sente isso tudo? Não. O desespero é exatamente ele saber que não pode mais sentir. Sentir ficou macerado em algum cargueiro de papel com o qual se brincou na infância, mas que amoleceu e rasgou. Não há mais como acreditar em sentir. E essa é a tragédia do marinheiro que o homem não é, mas mago que se fez mago negro. Convoca e convida, num réquiem às avessas, satânico, a trupe mais violenta que o penetrasse de algum laivo de sentir. Mesmo que seja a terrível das dores. Que seja a terrível das dores! É de uma tristeza tamanha a apatia que o leva a este ato derradeiro de invocar a morte como uma maneira de reanimar o corpo perdido. Mas a magia ocorre. E aquele momento êxtase em que ele silencia o poema com um ehhhhhhh ehhhhhhhh ehhhhhhhhhh ehhhhhhhhh ehhhhhhhh imenso, ali nesta hora surgiu-lhe a máscara perversa: o bebê, a criança em seu pranto. Não é um clímax, mas um anticlímax, ou ainda é clímax pelo estertor, é gozo de pranto. Nesta hora o mago tira as luvas (veste outras?), a carapuça dionisíaca ansiada de tudo poder voltar a sentir veio, pelo revés, agora não vais sentir mais nada, e essa lâmina rota tem o talhe daquele dia de infância em que tudo era possível. Ele é lúcido demais de sua impotência. E lúcido demais da potência disso. Um mago. Cai no pranto, mas o pranto, até o pranto cansa. Ou expõe demais. Ludibria ou sai do controle. Organicamente, como um bêbe que chora a esmo, chora pela própria existência palpável e material de haver o choro, e gastá-lo, como esse bebê ele estanca, e pára, e se depois do temporal vem a calmaria, depois do choro berrante, para a criança, saciada de chorar, saciada a esmo de sentir, vem o sono. É quando ele abre os olhos abertos. Percebe que sua evocação mágica, seu domínio cênico da partitura do assombro, não trouxe de volta a aventura mítica dos mares, não resgatou o corpo as intempéries da viagem. Não: afundou-o mais, é pela queda que ele passa a sentir, pelo vexame de ter de ir sentir lá na infância, no exatamente remoto e primitivo de não ter consciência. Golpe de mestre, mestre negro: acordar as sensações, só as impossíveis! E a tragédia, ao final, não se alivia. Não há manobras a ela, não há manobras pelas sensações. Que sensações, aliás? Não se acredita em nada disso. São tudo palavras. E o denso mistério perverso de levar o canto à derrota. Há apenas uma saída. Um beco estreito, para o qual há de se ter talento, fúnebre talento: a ironia. Como se a modernidade cindisse um organismo pleno real afetivo entre as coisas. Depois das filosofias, das cidades, das máquinas, das velocidades, do banal, só o poema pode ser orgânico. Mas o é por técnica. E é. É ele agora, não mais o homem, (mas o homem não é exatamente o poema?) que evoca, cai em pranto, e volta a se acalmar na apatia. A magia agora é o meu olho transtornado, dentro de um automóvel, em São Paulo. Se a ode parece um réquiem das sensações, canto na euforia desesperada de ressuscitá-las, somos nós que acordamos sensíveis, já que o poema se fecha em (também comovida) ironia e desesperança. O desespero vira desesperança, como aquele bebê cansado de chorar pelo copo de leite que não vai ter, que vai ser dado aos gatos, sem que a mãe nem leve em consideração a manha maldita de quem ainda sentisse. O homem caído na mediocridade plena de ter sido um bebê agora reage, quer golpear esses gritos estridentes de pessoas que fossem só emoções. Como se ele não suportasse ter de ir buscar ali as emoções que não terá mais. Não só porque tudo ali é perfeitamente remoto, mas principalmente porque tudo ali é perfeitamente, também, inventado. E cai de novo em si. Sobrevivente, irônico. Sem talvez, um pingo de complacência consigo. Apenas um mago ciente de sua técnica. Um gênio. Pelo avesso. Mas e nós? Eu e ele, e você, e nós? Arrebatados. Talvez fossemos mais simples que isto tudo, que esta barcarola que ele conduz sem sequer piscar. Nós sim, para muito além da infância e de qualquer mar. Nesta hora – eu imagino – talvez alguém como um autor pudesse, enfim, franzir a boca num sorriso. De lado. Afinal, sentir? Sinta quem lê.



--------------------------------------------------------------------



esse se faz o primeiro registro aqui de algo bordejando o livro do contágio


tudo se deveu a ontem, ter ficado comovida, ouvindo o ator João Grosso dizer a alma da 'Ode Marítima', do Álvaro de Campos


quem não a leu toda, que escute-a um pouco, ao menos, e se embale, aqui

quinta-feira, abril 7

venho movente


a dizer dos deslizes, ao longo de já 12 anos, sobre o

LIVRO DO CONTÁGIO

que talvez não conhecerá fim

e que se segue em estado de solta entrega


a ele

são convidados

todos aqueles


e também

a hilda que disse, tu não te moves de ti


e o pessoa, com as imagens do Destino orbitando a mola do Desassossego


e a Llansol que hoje quem me abriu foi a Érica e recordo assim que está lá

tudo está lá


são esses os primeiros convocados


este areal é de morte


areia-movediça já diriam os semoventes


espaço de dança do deserto


scripts de enigmas, bolhas suaves

do que vier acompanhado


o Livro do Contágio


- dias seguintes semoventes também

deixando aqui o havendo-há da poesia

que vem às bordas

como oásis perturbadores

muito amantes

da mão encardida

encarniçada


nos ensaios